_conto
Não sabe aterrissar
Legião Urbana, Engenheiros do Hawaí, Paralamas do Sucesso. No colégio, rodinhas de violão idolatravam essas bandas, cantando em coro coisas do tipo "É preciso amaaaarrr...". Mesmo com toda vontade de estar ali participando, por causa dos amigos, Sofia tinha a cabeça no Led Zeppelin e Black Sabbath.
Para não dizer que odiava o rock nacional, toda a energia que usava para em casa cantar "Whole Lotta Love" [que pede gritinhos histéricos fanáticos], ela começou a despejar nos Raimundos. Rodolfo nem chegava aos pés de Robert Plant [da cintura para cima]. Muito menos daquele power black bala do Hendrix. Mas a pegada de rock sem escrúpulos dava de dez na cara de Renato Russo [Sofia simplesmente odiava o som dele. Só isso].
Como sabia que nunca veria na vida o Led ou Sabbath, transferia todo o tesão para os Raimundos, que volta e meia faziam show em sua cidade. Isso era mais plausível que suas investidas em percorrer as ruelas de Lençóis atrás de um Jimmi Page fazendo jam em um boteco qualquer [ela até que tentou, mas ele já havia se mudado há uns três anos].
Naquele final de ano, foram dois shows dos Raimundos na cidade. Um mês antes, quando soube do primeiro, Sofia já estava rouca e com sua mãe gritando pela casa porque não aguentava mais ouvir "foi num puteiro em João Pessoa...".
A vera: umas oito mil pessoas e ela agarrada à grade lá na frente, implorando para subir no ombro de um garoto [para tirar fotos na câmera dele]. O cara já estava cansado [apesar de Sofia ser bastante... er... esguia] e depois ainda teve que tirar aquela menina louca do meio de um bando de roqueiros que só sabiam dançar chutando.
Um mês depois. Outro show e desta vez não tinha grade. O palco era da altura de onde estava a platéia... com uma vala de dois metros de largura no meio. A galera ensandecida gritando e os caras já estavam se despedindo. Ninguém queria que eles arredassem os pés dali. Sofia chegava cada vez mais perto do palco, quase esmagada por gigantes [além de morrer de medo que alguém empurrasse-a na vala].
Tchau. Uma, duas, quase vinte pessoas pulando no palco. Por adrenalina, para explodir. Sei lá, para caçar a paletinha do Canisso. Sofia pensa uma vez e dá as costas... Era só para pegar impulso e ir junto. Nem saberia o que fazer se conseguisse atravessar a barreira. Mas o negócio formigava em suas pernas. Três segundos e ela cai agachada no palco. Mais uns dois segundos para o segurança dar-lhe uma cotovelada no olho e ela voar direto para a vala... desmaiada.
Abre os olhos [o esquerdo não abria]. Estava na enfermaria ao lado do palco. Dois amigos e tensão por um olho roxo que vinha acompanhado de uma bolsa de sangue. Respiração presa no ar. Sofia abre a boca: "eu quero é ver o ocoooooo...". E começa a rir. Mesmo sabendo que seu olho vai ficar daquele jeito pelos próximos dois meses.
22.4.04
7.4.04
conto
Asfalto-bolinha-de-gude
Sofia tinha tantos sonhos, em que sobrevoava a cidade e conhecia os mais inóspitos bairros, que calçar patins nunca a arrebatou com alarde. Patins era sinônimo de "única coisa que você pode usar para ganhar adrenalina como seu irmãos naqueles skates". Frase de seu pai, que nunca achou que menina só podia brincar de boneca, mas não dava corda grande para moleca que gostava de ribanceira com papelão abaixo.
A verdade é que ela fingia que ouvia seu pai assoviando da janela, mandando-a voltar para casa porque não gostava da combinação ladeira + skate + Sofia. Fingia que ouvia para não olhar à janela alta no exato momento em que o chão implorava sua presença... quente e rolante sobre si. Nada que não fizesse Sofia ganhar patins no Natal e sempre convencer seus irmãos de que eles deviam se libertar da idéia fixa de que homem que é homem... não empresta skate para a irmã mais nova.
Depois que se mudou para um condomínio sem ladeiras, aos 9 anos, Sofia só voltou a subir em um shape quando tinha quase 20. Primeira experiência e "Sofia, vai descer descalça?". Ah, era um do tipo downhill, só para escorregar tobogã e dar risada. Mas a ladeira não tinha fim e o freio virou o pé esquerdo.
Dois meses depois, quando a carne lá embaixo ainda era rosa, ela topou campeonato na ladeira kamikaze da vizinhança. "Mantenha o shape equilibrado", "É melhor não ir". Sofia é teimosa como qualquer menina que acha que sutiã de lycra e bordadinho é coisa de bisavó.
Joelho dobrado, olhar fixo, saia para cima (é, ainda tem essa). O shape treme, o coração gela. A velocidade é tanta que, se ela desistir e pular fora, capota que nem aluno iniciante de judô no tatame. O último pensamento foi a lembrança por não estar com blusa de alcinha.
Descontrole no pé e ombro direto ao chão. Três roladas, rosto quente de tão vizinho ao asfalto. Ergue o tronco amassado, suspende a blusa rasgada. Ombro em chamas. Uns dois minutos e ela consegue soltar a respiração. Dobra o punho e "massa, não vou precisar engessar". Levanta o corpo do chão. Sofia solta um suspiro por estar bem. Com a saia destruída, mas sorriso no canto de boca: "Ainda bem que não rasguei meu Conga". Bota o skate debaixo do braço e segue. De novo, em direção ao topo da ladeira.
Asfalto-bolinha-de-gude
Sofia tinha tantos sonhos, em que sobrevoava a cidade e conhecia os mais inóspitos bairros, que calçar patins nunca a arrebatou com alarde. Patins era sinônimo de "única coisa que você pode usar para ganhar adrenalina como seu irmãos naqueles skates". Frase de seu pai, que nunca achou que menina só podia brincar de boneca, mas não dava corda grande para moleca que gostava de ribanceira com papelão abaixo.
A verdade é que ela fingia que ouvia seu pai assoviando da janela, mandando-a voltar para casa porque não gostava da combinação ladeira + skate + Sofia. Fingia que ouvia para não olhar à janela alta no exato momento em que o chão implorava sua presença... quente e rolante sobre si. Nada que não fizesse Sofia ganhar patins no Natal e sempre convencer seus irmãos de que eles deviam se libertar da idéia fixa de que homem que é homem... não empresta skate para a irmã mais nova.
Depois que se mudou para um condomínio sem ladeiras, aos 9 anos, Sofia só voltou a subir em um shape quando tinha quase 20. Primeira experiência e "Sofia, vai descer descalça?". Ah, era um do tipo downhill, só para escorregar tobogã e dar risada. Mas a ladeira não tinha fim e o freio virou o pé esquerdo.
Dois meses depois, quando a carne lá embaixo ainda era rosa, ela topou campeonato na ladeira kamikaze da vizinhança. "Mantenha o shape equilibrado", "É melhor não ir". Sofia é teimosa como qualquer menina que acha que sutiã de lycra e bordadinho é coisa de bisavó.
Joelho dobrado, olhar fixo, saia para cima (é, ainda tem essa). O shape treme, o coração gela. A velocidade é tanta que, se ela desistir e pular fora, capota que nem aluno iniciante de judô no tatame. O último pensamento foi a lembrança por não estar com blusa de alcinha.
Descontrole no pé e ombro direto ao chão. Três roladas, rosto quente de tão vizinho ao asfalto. Ergue o tronco amassado, suspende a blusa rasgada. Ombro em chamas. Uns dois minutos e ela consegue soltar a respiração. Dobra o punho e "massa, não vou precisar engessar". Levanta o corpo do chão. Sofia solta um suspiro por estar bem. Com a saia destruída, mas sorriso no canto de boca: "Ainda bem que não rasguei meu Conga". Bota o skate debaixo do braço e segue. De novo, em direção ao topo da ladeira.
6.4.04
conto
Tanto e somente
Sofia não sabia nadar. De pequena, o pai não deixava a água do mar passar do joelho. Pular de uma pedra era sonho. Cansava de implorar, por intermédio de sua mãe, que fizesse aulas de natação. Liberdade: talvez fosse esse o motivo para, com 14 anos, sair de casa mais vezes. Nada de touca ou pé-de-pato. Era difícil mostrar em casa que proteção era sinônimo de prisão. Era a única filha de pais que rezavam para que ela crescesse logo e passasse num concurso de banco da vida. Pesadelo: não imaginava sua criatividade enclausurada atrás de um guichê - "a senhora digita a senha, por favor".
Sofia cresceu, mas não aprendeu a nadar. Era raquítica e tinha cara de menina, quando já tinha permissão para voltar para casa quase de manhazinha. Sua mãe, àquela altura, havia desistido de enviar carta de reclamação ao Biotônico Fontoura. Mesmo adulta, ela nunca se atreveu a deixar a água do mar passar dos ombros. Sofria de aflição ao imaginar que sua ansiedade ia dar numa falta de ar e, quando mais precisasse, não teria o chão a seus pés.
Tudo em vão. Na primeira oportunidade que alguém incitou nadar "até aquele barquinho", ela não se lembrou da fraqueza dos seus braços e pernas. Mas tão querido foi o sorriso que a arrastou, que Sofia sabia que ele o salvaria se a água lhe chegasse à testa. Foi o tormento das tempestades de inverno aquele dia de julho. Sofia cansou rápido e quase afunda - um paradoxo para o seu peso. Só lembrava de tudo que ainda haveria de fazer longe de um guichê de banco. Força e ela gritava "espera aí, me ajuda". Foi arrastada por um fôlego só até o barquinho. Só não chorou para que não lhe viesse à cabeça a lembrança torpe da morte no meio do oceano.
Seu refúgio foi lembrar da natação. Mas, como de pequena, algo não a aproximou da piscina e de um maiô horrendo, que acentuaria ainda mais a sua falta de carne. Uma prancha e uma cordinha presa ao pulso era mais atraente. Tudo bem que ela não aprendeu a nadar, mas os velozes pés-de-pato nunca a abandonavam. Ela preferia, por vezes, esquecer de sua magreza, fraqueza, cara de menina. Mas de vez em quando aparecia alguém com cara de 15, para lembrar-lhe que já tinha 25.
Tanto e somente
Sofia não sabia nadar. De pequena, o pai não deixava a água do mar passar do joelho. Pular de uma pedra era sonho. Cansava de implorar, por intermédio de sua mãe, que fizesse aulas de natação. Liberdade: talvez fosse esse o motivo para, com 14 anos, sair de casa mais vezes. Nada de touca ou pé-de-pato. Era difícil mostrar em casa que proteção era sinônimo de prisão. Era a única filha de pais que rezavam para que ela crescesse logo e passasse num concurso de banco da vida. Pesadelo: não imaginava sua criatividade enclausurada atrás de um guichê - "a senhora digita a senha, por favor".
Sofia cresceu, mas não aprendeu a nadar. Era raquítica e tinha cara de menina, quando já tinha permissão para voltar para casa quase de manhazinha. Sua mãe, àquela altura, havia desistido de enviar carta de reclamação ao Biotônico Fontoura. Mesmo adulta, ela nunca se atreveu a deixar a água do mar passar dos ombros. Sofria de aflição ao imaginar que sua ansiedade ia dar numa falta de ar e, quando mais precisasse, não teria o chão a seus pés.
Tudo em vão. Na primeira oportunidade que alguém incitou nadar "até aquele barquinho", ela não se lembrou da fraqueza dos seus braços e pernas. Mas tão querido foi o sorriso que a arrastou, que Sofia sabia que ele o salvaria se a água lhe chegasse à testa. Foi o tormento das tempestades de inverno aquele dia de julho. Sofia cansou rápido e quase afunda - um paradoxo para o seu peso. Só lembrava de tudo que ainda haveria de fazer longe de um guichê de banco. Força e ela gritava "espera aí, me ajuda". Foi arrastada por um fôlego só até o barquinho. Só não chorou para que não lhe viesse à cabeça a lembrança torpe da morte no meio do oceano.
Seu refúgio foi lembrar da natação. Mas, como de pequena, algo não a aproximou da piscina e de um maiô horrendo, que acentuaria ainda mais a sua falta de carne. Uma prancha e uma cordinha presa ao pulso era mais atraente. Tudo bem que ela não aprendeu a nadar, mas os velozes pés-de-pato nunca a abandonavam. Ela preferia, por vezes, esquecer de sua magreza, fraqueza, cara de menina. Mas de vez em quando aparecia alguém com cara de 15, para lembrar-lhe que já tinha 25.
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